terça-feira, 17 de novembro de 2015

O cruzeiro do sul XII - Além do porto seguro

Eu estava sentado no alto de uma caixa grande com ferragens que ficava do lado direito e lá no fundo perto da porta do baú da carreta que transportava as ferragens, a lona, outros materiais e os trabalhadores que montavam o circo. Eu já tinha tocado algumas músicas pra animar a galera e agora era a hora de deixar os peões dormirem um pouco. Estávamos percorrendo uma rodovia que beirava o mar, tínhamos desmontado o circo em São Pedro d'Aldeia e íamos em direção à Muriaé no estado de Minas Gerais. Essa caixa era grande de forma que eu estava sentado e conseguia olhar pela única janela de mais ou menos um metro de altura e um metro de largura. Pegando no rosto o vento quente do verão, olhando a luz da lua que refletia na água do mar de Macaé e ouvindo o ronco daqueles supercansados heróis que literalmente carregavam todo aquele espetáculo nas costas. Eu só pensava: "que vida louca". O mês de janeiro que seria a época mais propícia a juntar uma grana na região dos lagos, me deixou assim como cheguei, zero a zero. Num restaurante em cabo frio eu consegui trabalhar da última semana de dezembro até a primeira de janeiro, tempo suficiente pra conhecer a Lúcia, uma mulher de uns quarenta anos que me ofereceu um quarto na casa dela por um aluguel bem baratinho. "Mas se você não puder pagar, também não tem problema não gaúcho." Lá eu passei o mês de janeiro inteiro. O marido dela era segurança de uma boate e ela tinha quatro filhos, desses, três moravam ali. O John Lennon de sete, John Kennedy de oito e o Victor Hugo de dez. Eles moravam numa rodovia que fica as margens da lagoa de Araruama. Eu rodei aquela região dos lagos atrás de serviço, mas era um aqui que eu ficava dois dias, outro ali que ficava mais três e assim eu ia. Não conseguia me adaptar. Tinha-se ido o tempo que ser garçom era uma atividade rentável, mas o problema era mesmo comigo. Num dia chegava atrasado, no outro esquecia a gravata borboleta, no outro pedia pra sair mais cedo, no outro não ficava contente com o dez por cento. Parecia que era maitre e não garçom. Um fiasco. Sempre tive mais sorte que juízo. E nessas de pendengar aqui e lá, botei na cabeça que poderia fazer jingles e oferecer no comércio. Conheci um cara de um estúdio no centro de São Pedro e fizemos a parceria. Vendi uns dois ou três no comércio de São Pedro e depois fui oferecer nas outras cidades da região.
Num dia que estava vindo de Araruama vender os tais jingles, voltava desanimado por não ter vendido nenhum e ao passar por um campo grande onde tinha esse circo, fui até o encarregado e perguntei se poderia me arrumar uma vaga ali pra mim. "Cara, só tem de serviço pesado", me olhou dos pés a cabeça, eu disse que podia ser. Me olhou de novo. "E cadê suas coisas?" Eu ainda não tinha entendido, mas então me liguei. Eles estavam desmontando o circo, se eu quisesse era o serviço de desmontagem, perguntou sobre minhas coisas porque estavam encerrando aquela temporada ali. Era umas três horas da tarde, fui mais que rápido até a casa da Lúcia e juntei minhas coisas. "Onde você vai irmão?" Foi a pergunta do marido dela. "Cara, vou seguir viagem, conheci um pessoal de um circo aí e eles estão me oferecendo trabalho e indo em direção a Minas Gerais, preciso continuar minha jornada, não sei nem como agradecer a vocês por tudo que fizeram por mim, mas chegou a hora de partir." Ele tinha uns dois metros de altura por mais um e meio de largura. O braço dele era mais ou menos do tamanho da minha perna. Foi um das coisas mais estranhas ver um cara daquele porte quase chorar me pedindo pra ficar. "Irmão, não precisa pagar nada." Eu entendia então que o tamanho do corpo era propocional ao do tamanho do coração. Depois ainda tive que explicar pra cada um dos meninos o que estava acontecendo e me despedir também quase aos prantos, não fosse pela empolgação da aventura que estava apontando.
O dia amanheceu e já estávamos em Muriaé. Chovia fininho, então a montagem foi adiada até o tempo secar. Com os outros trabalhadores do circo, fui até o centro conhecer a cidade e bicar as mineiras. Lembrei que eu conheci um cara no Rio Grande do Sul que morava em Muriaé. Eu lembrava até o sobrenome dele. Juliano Manzinni. Depois que o tempo secou e se iniciou a montagem do circo, fui rodar a cidade a procura do Juliano. Levei a viola e minhas coisas, talvez nem voltasse mais pro circo, mas deixei em aberto e fiz isso no dia de folga. Fui pelo centro da cidade e em uma rádio, pedi que anunciassem que eu era viajante e estava a procura dele. Esperei um tempo nas dependências da rádio mas não obtive sucesso. Rodei um pouco mais e parei pra descansar do calor em uma praça que tinha uma estátua, um mineiro com uma picareta erguida como se pronto pra golpear, de uns dez metros de altura. Por ali tinha uns caras conversando que me notaram. Eu ouvindo a conversa, me meti quando o assunto era a falta de uns dois reais para inteirar o beck. "Eu tenho, tô dentro." Louco é louco em todo lugar. Logo fiz amizade com um deles o Tião que era mais receptivo e na espera daquele que foi fazer a correria, contei que procurava um tal de Juliano Manzinni, que tinha ido pro sul uns anos atrás fazer um tratamento pra dependente químico. Ele disse que achava que sabia quem era. Na esquina da praça ficava um prédio, lá da frente ele gritou: "Juliano." O cara morava lá. Apareceu na sacada e desceu rapidamente a escada. Fiquei uns dias na casa dele. Me mostrou a cidade, o interior onde tinha pela beira da estrada muitos pés de cajú, coisa que até então eu não tinha tido o prazer de conhecer e até fomos assistir uma palestra num centro espírita que ele frequentava. Ia de manhã trabalhar no circo e a noite voltava pra dormir ali, depois do circo montado, consegui passagem livre pro Juliano e pra mulher dele frequentar os espetáculos. Uma semanda depois de chegar em Muriaé, achei que era hora de partir. No circo foi a mesma novela de despedida. "Que isso gaúcho, fica com a gente, daqui duas semanas a gente vai pra Salvador e depois vamos pra Amazônia." Eles aprenderam logo a mexer com meu psicológico, mas eu já tinha uma rota traçada e era a hora de ir pra São Thomé das Letras. O Juliano me deixou no ponto mais distante da estrada três cinco meia em direção a Belo Horizonte onde tinha um balneário que dias antes tivemos ali fazendo um churrasco e tomando banho no Rio Preto. Ali entrei no rio e sentei nas pedras com as costas viradas pra corredeira. Tomei uma massagem de uma meia hora nas paletas e pronto, eu estava inteiro. Juntei a mochila, o violão deixei fora da capa que usei pra sentar na beira da estrada e toquei uma música do Belchior que diz assim: "Há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa..." e era ainda só o começo.

O cruzeiro do sul XII - Além do porto seguro

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