domingo, 27 de setembro de 2015

O cruzeiro do sul XI - Constelações, arquipélagos e nuvens.

Era legal demais morar em Brasília, no fim de semana a gente sempre inventava uma moda, ainda mais depois que chegou três vendedores novos, o Inerivan, e os outros dois que tinham nomes normais que eu não lembro. Um era cantor e o outro tecladista. Eu tinha uma caixa Frahm amplificada com microfone e mais a viola com captador. O forró pegava com gosto e sem intervalo. Era massa, eu pegava uma moreninha magrinha lá do Pedregal, linda que só vendo, ela tinha um namorado de uns dois metros de altura. A mão do cara era uma raquete de frescobol. Ela era espertinha, depois que me seduziu contou que tinha namorado. Ela tinha uma amiga baixinha com o cabelo pra baixo da bunda. Apresentamos essa amiga dela pro Jucelino e logo ela estava ficando com ele. Sexta, sábado e domingo era arrasta-pé do começo ao fim. No entanto, tirando isso, o resto era duro de aguentar. Já se viu trabalhar e não ver nunca a cor do din? Ficava em conta de aluguel, comida, um vale pingado aqui, outro ali. Só quebrada cruel, sol na pinha e dê-lhe perna. Eu e o Jucelino decidimos pegar o pouco dinheiro que a gente tinha, comprar tudo em itens de verão e ir pra Recife passar a temporada. Compramos umas cinquenta camisetinhas para mulher, uns topi e outras encrenca lá que a gente não sabia nem o que era. "Mulher compra qualquer coisa, na praia ainda...", " oche... e com o dinheiro do corno ainda hein gaúcho, hahaha". A empolgação era grande e se a gente não vendesse nada... bom, se a gente não vendesse nada, daí não sei mesmo. A gente não pensava nisso. Pensava em ir e em tudo dar certo. Dois sagitarianos, quatro bolsas com pertences dos dois e os objetos de venda, tudo junto misturado. Almerindo ria, deixou a gente na divisa norte de Formosa ainda no estado de Goiás. "Quero só ver hein Jucelino, vai na conversa desse gaúcho doido aí vai." Deixa estar, pensei. Era tudo questão de por em prática. Sempre foi. Sempre fui assim. Quer algo? Não espere. Faça você mesmo. O dia se despede com nossos passos ainda no trecho.
Outro dia, e enfim, Alvorada do Norte. Estou sozinho, ali era a divisa, dali pra lá era território inexplorado para mim, Jucelino já era da Bahia. Afinal, onde estaria ele agora? Na noite anterior foi difícil dormir. Pior foi aguentar ele reclamar desde a hora que desceu do carro do Almerindo. Quase mandei ele de volta pra Brasília. Faziam umas quatro horas que depois de umas duas caminhando um opala parou. Ia pra Barreiras, mas conforme eu e o Jucelino combinamos depois de muito tentar pegar carona juntos, um iria na frente mais ou menos um quilômetro. Se o de trás conseguisse carona, explicava que tinha outro mais a frente e que precisaria de carona para os dois, se não fosse possível, como foi no caso, pediria que o mesmo então desse preferência ao mais da frente por ser menos experiente e estar mais cansado, nesse caso o Jucelino. Tipo, eu me virava. Humpf sei. Que arrependimento, eu em frente ao último posto e o Jucelino nada de ligar. O cara que me deu carona depois de eu já ter caminhado alguns quilômetros com chuva e tudo, acabou de abastecer e fazer a troca do óleo. Fez o retorno, buzinou pra mim, acenou e se foi de volta em direção ao sul. Gente boa que só vendo. Era adventista da igreja do sétimo dia e tal. Não tentou me converter, e na verdade nem tocou muito no assunto. Falou mais de vendas que era a área de trabalho dele. Disse que estava numa boa fase. Pensei que se ele tivesse na pior iria querer me converter. O telefone tocou, o Jucelino disse que o cara que deu carona deixou ele em Barreiras, no primeiro posto da cidade. Eu disse que era pra ele ficar lá e esperar. Não sabia se conseguiria chegar lá ainda naquele dia, pois já era o fim da tarde. Nisso vinha um ônibus. Desliguei rápido o celular, mas onde se viu pedir carona pra ônibus? Mas já que era de turismo, fiz sinal. Parou. Na cabine o motorista e o motorista reserva me contaram que voltavam de Goiânia depois de terem levado um pessoal para ficar lá um mês. Iam pra Maceió, perfeito, em Recife eu fico, adentrei e sentei no primeiro banco atrás do motorista, mas tinha só um porém. O Jucelino estava em Barreiras e se eles fossem pela estrada que pega a direita antes de Barreiras pra ter acesso ao litoral? Precisava perguntar a eles, afinal eu não disse que ia até Barreiras. Antes de me levantar e ir na cabine falar com eles ouvi uns risos, tipo de meninas. Olhei em direção ao fundo do ônibus e vi um rosto espiando por entre os últimos bancos. Dois. Ops, três? Quatro. Sim, quatro eu disse quatro meninas no fundo do ônibus. Achei que rezar era um tipo de atividade que não me servia mais, pois minhas preces tinham sido atendidas.
Uma tinha catorze anos, outra quinze, outra dezesseis e a mais velha dezessete. É, sorte mesmo deu pra ver que não era. Tinha muito mais cara de encrenca que de sorte. Mesmo assim, como não encontrei o Jucelino no primeiro posto, decidi seguir com eles até o posto seguinte com a esperança do Jucelino não ter ficado no primeiro porque não ficava dentro da cidade e sim um quilômetro antes. Enfim, não encontrei ele em nenhum, os cara além de ter que mudar o curso da viagem deles ainda foram em outros três ou quatro postos pra que eu procurasse ele e naquelas de ficar sozinho a noite em Barreiras sem idéia nem dinheiro e seguir com eles, e principalmente com elas, segui pra ver no que ia dar. Nessas ia se juntando sonhos, vontades e planos pra se chegar em alguma cidade e dar algum jeito. Que sonhadores, eu mais que elas. Vai que a polícia federal estava atrás delas? Fugidas de casa que se não me engano ficava em Rio Verde. Minha nossa, até explicar. Quatro horas da tarde do outro dia a gente desembarcou em Feira de Santana. Meu celular não serviu de merda nenhuma, o Brasil na época tinha coberturas dividas exatamente entre Goiás e Bahia, não era a mesma operadora, então pra ligar da Bahia, pra um celular de Brasília que estava na Bahia era uma fotuna incauculável. Aff, eu na frente com minha mochila, atrás a que tirei pra Maria Bonita de dezesseis com a mochila dela, depois a de quinze levando minha viola, mais atrás a de dezessete e no fim a de catorze que não simpatizou nenhum pouco comigo e ainda por cima morria de ciúmes da de dezesseis. Eu era mesmo um louco. Aquilo chamava mais atenção que a Ivete Sangalo...
(continua)
O cruzeiro do sul XI - Constelações, arquipélagos e nuvens

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O cruzeiro do sul V - Conexão Paralela

Eu e o Elemilton estávamos no pátio da igreja que fica no alto de um monte, em Catalão. A gente conversava sobre como seria aquele lugar dali uns cem anos. Se aquele lugar existiria dali a cem anos. O planalto central é um lindo mar que oscila entre o verde e o marrom. No fim de tarde acrescenta-se uns dois ou três tons de vermelho e lá vem o paraíso. É, qualquer lugar nesse planeta é um paraíso. Sim, porque o próprio planeta o é. Além do mais o que é um paraíso sem a fotografia?Quando se está no momento e situação propícia ele se mostra. Rum e coca-cola eu lembrava que era bom, do tempo que eu bebia antes de ter parado de beber. Depois de quase quatro anos sem beber eu aceitei o convite do China pra uma festa de aniversário da mina que ele estava pegando lá em Goiânia. “Bota uma roupa aí gaúcho, a gente vai numa festa hoje.” Num momento eu estou ali tomando uma coca-cola sem saber por que não bebia mais. Quem era eu pra não beber mais? Vinte e poucos anos, cabeça mil graus, e quatro caixas d’água com gelo e muita cerveja espalhadas pelo quintal da casa. No outro eu estava de bigode, pelado, no chão do quarto. Cheiro bom é tudo, vai dizer. Atalhei no primeiro copo. O olhar era tudo que eu lembrava, agateado e malicioso sem ser vulgar. De deixar o cara de pau duro. O resto era o resto. Eles riam querendo saber se eu estava inteiro. Como não ia estar? Uma gata daquelas... Meu deus, eu estava recomposto. Bonita a “manquinha”? Rapaz, cheio de buraco naquele quintal eu ia notar alguma coisa. Elemilton se finou. Servi outro copo já derramando um pouco de rum e toquei outra música. Um fumo da massa não se achava muito fácil por ali, mas pra quem fazia o trabalho que a gente fazia aquilo era moleza. Era tudo que se podia exigir com coerência ali naquele lugar. Um amigo pra conversar, um violão, um beck e uma bebida pra esquentar a voz. Às vezes era um marasmo, mas sempre a gente inventava uma maneira de descontrair e relaxar a mente. Eu já tinha estado em Catalão no ano anterior, depois fui pra Goiânia, Brasília, depois me perdi na Bahia, voltei pra Brasília e então estava de volta lá. Contei o porquê fui pra Goiânia.
Mais cedo que o normal Amilton se levanta pra ir buscar o Barbosinha na rodoviária. "O cara é gente boa, vocês vão gostar dele." "Sempre trabalhou certinho". “Só é um pouco louco. Hahaha?” Não gostei nada daquilo. Era no tempo que o Acústico Capital Inicial bombava. Eu sempre tocava aquela música "O mundo" que tinha muito a ver com tudo aquilo que se passava. Acho que o Barbosinha entendia: "VOU falar que você não é nada, VOU falar que você usa drogas... que anda bebendo está perdido" ao invés de "VÃO falar". Ele entrava numas paranóias do nada. Na primeira que o Amilton viajou à Itumbiara e por lá pousou ele deslanchou. Eu assistindo tevê, o Ninha dormindo, o Barbosa chega já bem alterado põe a cara na janela e começa a falar umas bobagens, eu levantei e fui até a janela pra entender o que ele dizia. Não aturo tapa na cara de ninguém, se eu não revidasse ia o quê depois? Fazer-me de saco de pancadas? Não mesmo, meti um tapão também.  Até no reflexo foi, se eu pensasse bem um cara alcoolizado sempre se torna o valentão que não é, daí já viu. Correu até a porta dos fundos e entrou na sala como se nadasse no ar, distribuindo braçadas, tapas e socos. Uns dez ele errou, dois eu defendi e depois de derrubar ele no chão ele olhou pra uma faca em cima da mesinha da sala. Não ia adiantar eu continuar ali me desculpando, tentando de longe convencer ele aquietar o facho. Já eram quatro horas da manhã, mil litros de álcool no cérebro, maconha, cocaína, não sei mais o que ele havia usado e uma faca na mão. Atrás de mim ele correu uns dois quarteirões até parar e de longe me pedir pra voltar. Começou a chorar e se desculpar. Eu tentei então me aproximar, mas daí ele voltou a ficar irado. Lá vai mais uma volta na quadra correndo com aquele doente me seguindo e gritando. “Vou te matar”. Acho que a polícia do Goiás é a mais cética do mundo. O Ninha ligou pra eles e só então que na última maratona que, já na avenida onde ficava nossa casa, eu notei os policiais e o Ninha assistindo a cena. Porra, engraçado eu sei, mas me façam o favor né? Enfim, se ele não vai pra Goiânia, vou eu. Amilton implorou e no fim disse que o próprio Euclides não queria ele lá. “Imagina, o Barbosinha aqui. Deus que me livre e guarde.” Duas semanas depois, Amilton, Barbosa, Ninha, e Lora se foram a Goiânia buscar produtos. Churrasco e cerveja já era de se esperar, só o que não se esperava era o vendedor recém chegado ter dito uma besteirinha que o Barbosinha já meio chumbado entendeu errado. Num relance vi a mesa que estavam os dois voar e o vendedor novo sair correndo. Barbosinha junta a faca e sai correndo atrás. Barbosinhaaaaa... Não!


O cruzeiro do sul V - Conexão Paralela

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

domingo, 20 de setembro de 2015

O cruzeiro do sul IV - Novos mapas e conquistas.

Quatro horas parado em plena Dutra, pouco antes do Rio de Janeiro. Acidentes eram constantes ali naquele trecho. Passou um guincho puxando o que sobrou da F1000. Bateu de frente com uma carreta cheia de cimento. Era um grupo sentado no asfalto da rodovia, um advogado do Rio conta uma piada sem muito sussesso a respeito de gaúchos. Os dois caminhoneiros, José e Gustavo, revidam com piadas de cariocas. Eu deitado com as costas no asfalto olho pro céu. Porque quando me pegava olhando pro céu, instintivamente olhava em direção a estrela que aponta o sul no Cruzeiro do Sul? Alfa, a Estrela de Magalhães é seu nome. Aquela música "Terra" do Caetano não me deixava em paz, eu era o viajante daquela música? Mais pra errante navegante, ri sozinho e ninguém entendeu. No meio da piada. O José dizia, pra que quando chegasse no Rio, voltasse com o Gustavo. Ele ia só até a próxima cidade e voltava. "Conhece lá, enquanto o Gustavo descarrega dá uma passeada por ali mesmo perto do Ceasa." Mas bem capaz que depois de chegar lá eu ia voltar assim do nada. "Conhecesse o Rio? Sim, o pátio do Ceasa é lindo!" Não exteriorizei, apenas disse que eu tinha indicações pra conseguir trabalhar em Cabo Frio. Depois do Ceasa o Gustavo pegaria uma carga na Ilha do Governador.
Quando eu olhei da Ilha em direção a cidade com um sol reluzente por cima de seus montes e morros eu entendi o porquê "Babilônia Maravilhosa". Aquilo era incomum. Chegava o cara ter que dar aquele suspiro pra sentir conscientemente a vibração. Dois dias na boléia de um caminhão é coisa de atleta. Caminhoneiro devia ganhar uma nota mesmo. Após a saída da ilha o caminhoneiro voltava pra Santa Catarina. Desci na avenida Brasil. Se desse tempo de você entrar enquanto, e se, alguém descesse de um daqueles ônibus, era porque você encontrou um portal. Não vi um passar a menos de uns noventa quilômetros por hora. "Êta cidade ligêra!" Voei no primeiro que parou. "Todos vão pra rodoviária, sem erro, pode pegar qualquer um." De uma outra vez anterior a essa que estive no estado do Rio, passei uns dias também aventurando na região dos lagos. Conheci a Cátia e a Talita a filha dela. Elas eram do Rio. Elas me convidaram pra sair do miserável acampamento que eu estava em São Pedro da Aldeia e ir pousar no apartamento de verão delas em Cabo Frio. Elas me apresentaram o Arraial do cabo. Um sonho de lugar. Nada melhor que um pouco de conhecimento e dicas de bons contatos. Passei no apartamento delas no Rio para um café antes de seguir pra região dos lagos. Eu disse pra Cátia que ia até o mercado buscar um lanche pra viagem, mas na verdade fui descolar um beck. Entrei numa quebrada tipo de árvores cobrindo parte da rua. Igual na Redenção em Porto Alegre. No fim dela num morro de quase quarenta e cinco graus em direção ao céu, um magrinho que andava de um lado pro outro me estranhou. "Era só um discman escondido por baixo da blusa", pensei mais tarde, como se se pudesse explicar. Por via das dúvidas ele jogou um fumo de longe que caiu perto de mim. Tipo uns cinco contos que era de fumar uns três dias. Eu olhei aquilo, ele disse, "e te some." Preferiu me dar o fumo pra me ver longe dali. Achei um bom plano. Conforme a dica da Cátia, dessa vez abortei o ônibus. Próximo à rodoviária ficavam as vans que fazem o trajeto Rio x Cabo Frio, além de ser mais rápido era um pouco mais barato.
É uma bela queda, mas um pensamento pouco infundado o meu. Porquê só a van em que eu estava iria cair lá de cima? Muito bonito, minha mãe no sofá da sala e eu na tevê sendo anunciado que morri num acidente com a van. "... de Porto Alegre que estava em uma van que caiu de cima da ponte Rio x Niterói". Só de eu escrever isso aqui minha mãe morreu de novo. Bota fumo forte. Eu só tive sossego e saí dessa viagem quando meu olho notou o já escuro da noite que se aproximava e as luzes da cidade iluminando o Rio  inteiro. Você já viu isso? Tem um aeroporto ali. Suas luzes coloridas, simétricas e reluzentes orientam um lindo avião que vem pousar bem ali na minha frente. Aquilo estava mesmo acontecendo. Me pego rindo de mim mesmo e noto as pessoas ao meu lado, todas maravilhadas também com aquilo. "Tú é da onde?" Puts, claro que eu era gaúcho e pra meu espanto era o único "turista" ali. Eles passavam ali todos os dias, mas isso não conseguia sequer tirar o brilho daquele espetáculo que brindava as pessoas ao final do dia como se compensasse todo aquele mal do dia a dia.
Como o fim da linha era do lado de lá da ponte de Cabo Frio, eu seria o último a descer, quando me vi sozinho no último banco, deitei. A pochete atrapalhando eu deixei de lado porque incomodou. Quando o motorista notou no retrovisor que só restava eu, puxou assunto. Pra entender, cheguei mais perto. Como o fumo era bom, desci e esqueci a pochete. Pode me perguntar qualquer nome de qualquer rua de Cabo Frio. Fui uma por uma procurando uma van na garagem. O Daniel se despede, Araketu já ia entrar no palco, a praia lotada e eu ali, morto de raiva de mim mesmo. O discman era garantia, o tio espírita do camping me disse que a vida consistia em mérito, se eu merecesse a encontraria. Fui para a Coopervan assim que o dia amanheceu. Ainda bem que a tia do roupão, pantufas e croques tinha me avisado a respeito da tal cooperativa. O cara lá tinha um jeito de delegado. "Então gaúcho... olha eu liguei pra ele, e a van já estava indo pro Rio mas quebrou, tá lá na oficina, na saída de Cabo Frio, ele tá com suas coisas." Claro que eu esperava, esperava ele consertar vinte vans. Pensei no fumo que fez uma falta após o tipo delegado ter pago um almoço na pousada ao lado da cooperativa. Passei o dia ali tomando um chá de banco. Ele ja ta vindo! Fica como tema de casa, lembrar de pegar as coisas antes de sair. Por fim o tipo delegado me levou até a oficina. Agradeci a carona e me despedi do cara da van. Enfim iria começar meu verão. O sol se pondo, o dia acabando, o dinheiro também, eu com fome, ainda sem emprego e a diária do camping vencendo. Como bom estar de volta à normalidade.

O cruzeiro do sul IV - Novos mapas e conquistas.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O cruzeiro do sul VII - A pedra magnífica

Aquela temporada anterior ao ano dois mil foi mesmo demais, conheci o Arthur, a Bica, a Dani, o Telles, a Luciana, a Desirré. Fazíamos lual quase toda a noite de sexta e sábado. Ás vezes em pleno dia de semana. O mundo ia acabar e a lua nascia vermelhinha, juro, sei que muitos lembram, uma hora da manhã ela vinha derramando sangue. Muitos bons papos, luares, becks e romances agitaram aquela temporada. Num lual desses eu conheci a Carlinha e a irmã dela, elas me convidaram para conhecer onde elas moravam em Floripa, no beco do surfista. Muito massa era a onda do forró que imperava na ilha aquele tempo. Na volta de um  forró desses vi um bédibói dando uma surra num menino em frente ao camping que eu ficava.  "...ele merece apanhar bróder." Melhor eu ficar quieto. Arranhou o carro do cara com uma tampinha de garrafa. Puts. Não tinha nada que o tiraria a razão ou acalmaria o cara ali. Na casa da Carlinha eu comentei no dia seguinte e indaguei se existiria ainda um lugar onde todos se respeitassem, só galera alto astral, sem violência, onde não houvesse aquele tipo de cena pra tirar a paz do cara e foi então que o namorado da Carla disse: "São Thomé das Letras." Na verdade não tinha nem que comentar isso com ele, nunca tinha visto aquele homem na minha vida e já estava contando o porquê eu queria ir pra São Thomé, tudo que eu sabia dele era que ele trabalhava por ali. Acho que era tipo um vigilante, guardinha, ou olheiro duma daquelas lojinhas da bagunçada rodoviária de Belo Horizonte. Mas quando se está assim solto no mundo, a gente tem uma facilidade de se expressar, de ler as coisas, as pessoas, e então dá muita vontade de conversar. Ia ser complicado dormir por ali, muita gente pra lá e pra cá, e já era quase uma hora. Porra, também, nunca imaginei me perder. Desci do caminhão no primeiro posto dentro dos limites da cidade. Tinha grana pra um café com leite, uma pamonha salgada e a passagem até no centro. Iria sobrar pouca coisa, mas daria tudo certo, não fosse eu pegar no centro o ônibus em direção ao norte. "Mas a mulher me garantiu que ia pra rodovia em direção ao sul." Também, cada pessoa que eu perguntava dizia uma linha. Pega o vinte e um trinta e sete, outro, ah é o dezessei vinte e dois, o catorze trinta e seis. Parecia jogo do bicho, cada um dizia um número. No fim até que gostei de ir parar naquele lugar. Parecia um lugar perdido no tempo. Meia dúzia de casas, uma igrejinha, em frente ao único ponto de ônibus do lugar, uma venda, com um caboclo escorado na porta da frente. Calça com bainhas dobradas a mão, uma mais alta que a outra, camisa de botão por dentro das calças sem cinto e erguidas quase até o sovaco, um chapéu de feltro sujo, olhar vazio por trás do enorme bigode, de longe ele parecia impressionado com a visão daquele viajante com um violão a tira colo. "Eu te levo de volta pra rodoviária",  abençoado o motorista, que disse depois já ter viajado de carona por aí também. Enfim, agora era escorar a cabeça na mochila e dormir abraçado na viola. O simpático senhor me deu a dica de subir no segundo andar. "Tem uma corrente, Passa por baixo sem problemas. Lá fica vazio à noite. Eu cuido pra não deixar ninguém ir pra lá."
Sabe aquela sensação de que você vai ser assaltado? Pois é, não tive, mas eu li isso no ambiente. Muito explícito. Eles me viram de longe e parecendo conversar algo a meu respeito atravessaram a rodovia, eles estavam do lado que ia para o norte, e começaram a vir em minha direção. Eram uns quinhentos metros, mais do que ligeiro abri a mochila e fingi pegar algo, enquanto escondia melhor o disquemen entre as roupas. Eram quatrocentos metros e pensei: Que se foda, vou blefar. Nisso fechei a mochila e em seguida fitei-os. Fui acompanhando aquela aproximação com olhar firme e o cú na mão, duzentos metros, cem metros. Eu estava em um trevo da rodovia que vai para o sul de Minas ou para o triangulo mineiro,  na região metropolitana de BH mais precisamente em Contagem ou Betim. Eles parecendo comprar meu blefe, foram indo em direção a rodovia que ia para o triângulo por fora do trevo que eu estava e que tinha mais ou menos cinquenta metros, indo assim para trás de onde eu estava. Tentei esquecer deles um minuto e fiz sinal para um gol branco que vinha somente com um casal dentro. Me deixaram cinquenta quilômetros mais  a frente.
 Aquele dia eu torrei. Foi umas seis ou mais caronas pingadas para percorrer pouco mais de trezentos quilômetros, sendo que entre uma carona e outra, eu não esperava, ia caminhando, pensando na vida, curtindo a fotografia e a geografia do lugar. Conversava sozinho, tipo, "pow hein Deus, tá de sacanagem né? Já caminhei vinte quilômetros. Uma carona por favor." Me sentia livre de verdade, livre do mau que te prende, e te cobra sem te dar tempo de pensar. Muita gente te dizendo o que fazer, no que estudar, no que se formar, com quem casar...aff eu não era daquele jeito. Minha mãe nunca ia entender, nem ela nem ninguém. Preferia estar ali, todo mundo achando que eu ia virar andarilho, marginal, veado, ou qualquer outra coisa que traria desgosto pra família, mas no fim eu só queria pensar no que iria fazer, como iria viver a minha própria vida, sem a opinião ou muito menos a cobrança de alguém. Duas horas de caminhada e nenhuma carona, que coisa, às vezes cantava uma música pra minha satisfação e desgosto dos passarinhos que iam e vinham como se me acompanhassem naquele martírio. Por fim, de longe avistei um cara em uma parada de ônibus. Eu tinha tipo uns poucos, bem poucos mesmo, trocados, mas não dava uma passagem até Três Corações. Me aproximei. Perguntei se outro sol era preciso. "oche.." Fez uma cara de quem diz que aquilo era a pior coisa que poderia acontecer. Ele trabalhava na cidade vizinha daquela em que estávamos, disse que o motorista era amigo dele e que sempre ganhava uma caroninha naquele trecho. Disse que se eu pagasse a passagem dali, ou seja, o valor de passagem municipal, o motorista  que também era cobrador, faria vista grossa e deixaria eu descer só em Três corações. Bastava eu conversar e explicar a situação para ele. "Gente boa pra mais da conta... oche... aquele ali eu conheço." Ele tinha razão, o motorista era mesmo uma boa alma. Enfim, estrada Três Corações x São Thomé das Letras. Consegui uma carona até a metade do caminho. E agora, quem vai dar carona a noite? Entrei no primeiro armazém da estrada, na frente nenhum carro, só uma moto TT pra quem conhece. Entrei. Quarenta e dois quilômetro de estrada e eu justamente no meio. Do nada. "Quer tentar? Sem capacete." Eu sou de negar o perigo? Aceitei o convite do  motoqueiro que me garantiu que depois daquele bar era só mato, escuridão, ET's e o escambau. Do pé da montanha até a entrada da cidade eu corcoveei feito um peão de boiadeiro naquela moto.
Fui caminhando de mansinho, parecendo tatear o lugar e vi um cara na sacada de um apê. Eu disse que estava chegando e estava querendo um lugar pra ficar, mas sem luxo, porque eu era aventureiro e a luta era grande. Ele me disse: "Amigo, tá vendo essa estradinha ali? Pega ela e vai subindo, logo vai fazer amigos, já cola uma gatinha na tua, depois tem um som que rola lá em cima no bar do dois." Só podia tá louco, onde já se vi um lugar assim, não era a Disney. O Márcio vinha descendo a rua e veio em minha direção me estendendo a mão com um sorriso bem amigável. Começou no meio do assunto que tinha que descer ali no Xande pra buscar um fumo, eu não sabia quem era Xande, mas fui junto. Voltamos até a casa de onde o Márcio veio, tinha uma janta lá. Era a casa de um cara que tinha metade da cabeça raspada e a outra metade com cabelo cor de rosa. Ele disse que era de gêmeos. Dois dias mais tarde estou sentado nas pedras olhando em direção ao vale, ou fundos da cidade. O céu parece feito com papel crepom azul e as simpáticas estrelas como diamantes, a lua eu tinha certeza que estava a uns dois quilômetros de distância da gente. Uma gigantesca gema no céu. Segurei a mão dela e a beijei de novo. Como podia eu totalmente crente, em Deus, em energia, em pensamento, em destino, em coisas e pessoas e ela totalmente cética, analítica, calculista. Uma troca de olhar, um ou outro comentário, um friozinho na barriga. Não, eu não ia deixar passar batido. Eu ela nos grudamos durante aqueles dias todos. Duas semanas praticamente reservadas para nós no paraíso. Conhecemos as cachoeiras, vimos as estrelas bailarem no céu de São Thomé ao som do bar do dois, conhecemos o Tio Bill, vimos a luz do fogo se misturar ao nosso brilho do olhar e fizemos aquilo que ela insistia em relembrar nos dias que se passaram. Levamos o colchão da casa dos "hippies" que nos alugaram o chão da cozinha da casa deles, lá pra cima da pedra da bruxa. Lá a gente ficou até o frio das cinco horas da manhã nos vencer. Ela nunca tinha viajado de carona. Mas voltar pra São Paulo como, se nossos últimos centavos gastamos nas nossas duas e meia semanas de amor? O dia se vai, a Thaís e o caminhoneiro com destino a São Paulo também se vão. Vejo o caminhão sumir no horizonte. Ignoro os carros que passam, me viro e retomo minha jornada, volte e meia ergo o polegar. "O chiquinho mora em Araxá", pensei. "Pois é... depois ainda quero ir a Uberaba, preciso ver o Chico Xavier, quero conhecer Brasília... Ou melhor, acho que Brasília não." Já é quase noite, um carro pára.


O cruzeiro do sul  VII - A pedra magnífica

domingo, 13 de setembro de 2015

O cruzeiro do sul IX - De coração à terra

Você sabe que está em um lugar perigoso, mesmo não vendo algum bandido, marcas de bala, gente usando drogas nas ruas. O ambiente tem sua maneira de te passar isso, se você estiver atento, poderá ver todas as coisas. Um menino chega pra mim e pergunta se eu vendo livros. Quem não nota um corte de aproximadamente dez centímetros no pescoço de uma criança a um metro de distância? Por toda a Samambaia eu senti medo, mesmo assim fui a todas as casas e conversei com todas as pessoas que precisava. Alguém me contou de um acidente com cerol de uma criança no conjunto, “pegou no pescoço, quase degolou o menino”. Era sempre quente e minha cabeça doía todo fim de tarde. Achava que abaixo de dezesseis por cento daí Deus já estava de brincadeira. Deus, São Pedro, ou sei lá quem que comandava aquela umidade relativa do ar me fez acreditar que sim, sempre tem como esticar seus limites além dos limites, basta uma “pressãozinha” e pronto, lá está você abaixo de sol, sangue pelo nariz e a umidade do ar a quatorze por cento rindo bem na sua cara. Sempre tem aquela boa alma que traz um bom copo d’água, um convite pra vir à sombra ou mesmo um convite para entrar e tomar um café. Pensava o que eu estava fazendo lá. Bem no meio do Brasil, mais de mil quilômetros de algum parente, entrando em cada casa, de cada rua, de cada bairro de cada cidade satélite. Barro vermelho sob os pés, poeira vermelha se misturando ao suor da testa, uns bons óculos escuros prateado com lente verde espelhado e uma pasta preta com notas e alguns manuscritos, relatando em detalhes aquela longa jornada. O resto era muita coragem, gosto pela aventura, amor pela fotografia, pela geologia e sorte igual a nunca se tinha visto antes naquela jovem vida aventureira. 
Um pastel de carne e um café preto doce que igual mesmo só em Brasília, um real e cinquenta. Sobravam dois e cinquenta. Almoço por quatro reais nunca mais eu vi. A última vez foi em Pirenópolis, ou em Santo Antônio do Descoberto onde tinha uma pousada que a gente entrava na cozinha. Tinha uma mesa grande que abrigava umas vinte pessoas, cada um pegava seu prato e ia até o fogão à lenha e se servia o quanto fosse necessário. Tinha refrigerante, mas não do tipo coca-cola, fanta, ispraite, tinha aqueles guaranás em garrafa de cerveja. Isso mesmo, só coisa boa. E se ainda desse aquele ataque de, “ah refrigerante faz mal”, você podia ir até o quintal, pegar uns dez segundos de sol do meio dia, a um milhão de graus na cabeça, e buscar laranjas no quintal pra fazer um suco no espremedor de alumínio à manivela.
Parei de escrever pra procurar um local onde batesse pelo menos uma brisa e acabei por ver um terreno baldio com algumas pessoas por ali olhando em direção ao mato que encobria o terreno e escondia um corpo, mas não os pés que provavelmente ficaram pra fora propositalmente. A aglomeração aumentou. Em questão de poucos minutos crianças estavam por ali, brincavam de atirar no corpo, queriam pular por cima do corpo morto, não fossem contidos pelos policiais. Qualquer que fosse o acontecimento, nada ali chamava muita atenção. Eu me perguntava como um lugar que durante o dia não se via ninguém pelas ruas além de crianças correndo e brincando se misturando a sujeira e aos cachorros, podia acontecer aquilo. “Di dia os bandidos tão tudo dormindo, pá di noite eles trabalhá, hahahaha”. Ela ainda ria. Achei que poderia no quarto da casa está dormindo um. Até mesmo o próprio homicida da noite anterior, quem sabe? Sofri por um momento, perguntei se poderia usar o banheiro. Passei um pouco de água na cara. Saí rapidamente quase tropeçando na motoca de plástico deixada no degrau da porta. Eu sempre quis estar em Brasília, mas até então tinha medo, ouvia falar do alto índice de violência e ficava muito assustado. Uma ligação de Taguatinga pra Uberaba, um convite via telefone e a promessa do pagamento da passagem e pronto. Lá ia eu morrer. Que se foda! Morro mesmo! “Minha mãe me mata” pensei logo após uma breve reflexão...Tudo bem, ela supera!

O cruzeiro do sul IX - De coração à terra

sexta-feira, 11 de setembro de 2015


  O já extinto Restaurante Internacional da guarita.
 Luquinha e Valquirinha, sobrinhos do Chico, em frente ao Hotel de Araxá
Dia de sol era promessa de grana certa.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

O cruzeiro do sul VIII – Entre um passo e a distância

Eu sempre quis saltar de paraquedas. Qualquer coisa que fizesse meu coração acelerar um pouquinho e me fizesse sentir um pouco mais vivo, eu queria. Eu queria adrenalina e não achava que era interessante deixar de fazer as coisas que queria por simplesmente perigo do que poderia acontecer. Na verdade queria realizar-me como ser humano, mas com vinte e três anos, cabeça de treze anos e experiência de vida de três anos. Enfim, o máximo que eu podia fazer estava fazendo. Sair de onde estava pra poder ir o mais longe que podia, sem nada, sem dinheiro, sem segurança, sem ajuda, sem nem mesmo um incentivo de alguém era muita, eu digo muita adrenalina. No verão anterior ao ano dois mil eu estava em Torres e o verão ia começar, consegui trabalho de garçom no Restaurante Internacional da Guarita, dentro do parque de mesmo nome. Para o início do trabalho era necessário frequentar o curso de garçom que se deu no extinto Continental Torres Hotel. É bom pra se familiarizar com o pessoal que vai atravessar a temporada com você durante dez horas do dia, durante os noventa dias da temporada. Foram muitos bons atendimentos, muitos maus atendimentos, muitos entendimentos e muitos desentendimentos. Nada fora do normal. Aqueles até então desconhecidos guerreiros, tornaram-se parte de uma louca galera que muito riu durante aquela temporada. Para o fim do verão era combinado aquele salto a dez mil pés sobre a linda praia de Torres, e depois a mochila nas costas pra seguirmos em direção ao Rio de Janeiro pegar o inverno e a temporada seguinte na região dos lagos, provavelmente em Búzios. Merda nenhuma. Eu estava ali sozinho, sem nenhum daqueles “papudos”, pensava às vezes ressentido. Mas o que se daria se tivesse sido diferente? Já teriam tudo se brigado, quebrado o pau e daí só ia ficar más lembranças. Melhor assim. Vou sozinho mesmo. O que tem de mal em dormir na rua? Uma vez só, até amanhecer. Já eram quatro e meia. Na grama da fábrica da Brahma eu tentei, mas não consegui. Coisa pinicando na roupa ninguém merece. Então a sorte me trouxe uma caixa de papelão do tamanho de uma teve de vinte e nove polegadas. Era gol. Colchão ortopédico, tempo quente, e uma revessa ao lado de uma padaria. O que eu queria mais. Cinco estrelas. Aquelas três horas de sono cansado se transformaram em mentais vinte segundos. Outro dia chegou e o dinheiro ainda dava um pão com margarina e um café com leite. A fome ainda estava ali, mas controlável. Na fábrica a indicação do tio da guarita de vigilância me levou até um cara de óculos quadradinho, tipo de um técnico de futebol que não lembro o nome agora. Ele disse que eu estava com sorte, ele ia para o triângulo mineiro. “Araxá fica um pouco antes de Uberaba, te deixo lá”. Tamanduá é um animal que sempre quis conhecer, ou pelo menos ver com meus próprios olhos, mas nunca esperaria vê-lo morto atropelado. Que merda! Odeio os humanos. Nós não conseguimos viver sem fazer merda. Isso aqui não é só nosso, é feito pra todos. Araxá deve ter em torno de uns cem mil habitantes, se eu procurar alguém nessa cidade a minha chance de encontrar é de um em cem mil, calculei rápido. Fiquei um pouco desanimado, mas enfim, o que eu podia fazer pra resolver aquilo? Começar a procurar. E então eu fui de pessoa em pessoa e disse que estava procurando um cara que se chamava Francisco, o apelido dele era Chiquinho e ele era do Rio Grande do Sul, gremista fanático, de olho azul. Conversei na rua com umas cinquenta pessoas até ter a idéia da rádio. “Sim, aquela vez em Muriaé eu fui na rádio e anunciei”. A lembrança do resultado foi um pouco desanimadora e acabou baixando um pouco aquela excitação, mas enfim, pelo menos na rádio eu descolava uma água gelada ou quem sabe um café, daqueles melados que fosse, e um banco estofado pra descansar as pernas. “Cara você está com sorte”. Aquela velha e conhecida frase ele acabou me estendendo um copo de café me apontando o açúcar ou adoçante. Apenas tomei um gole puxando a cadeira. O técnico de som sabia de quem eu estava falando, e estava indo pra lá naquele instante. Na verdade era a casa do tio do Chiquinho, o seu Francisco de mesmo nome e apelido, me explicou a esposa dele. “Mas o Chiquinho tá sempre aqui, inclusive eu recém liguei pra ele vir me trazer mais geleia e mel”. Dez minutos mais tarde olhei bem no fundo daquele olho que tinha a mesma cor da camisa, parece que me via refletido ali naquela retina, todo sujo, e com os cabelos molhados da recente chuva a caminho dali. “Tem lugar na tua casa pra mim? É só de passagem”. Perguntei rindo. “Dentro de casa não, mas o quintal é grande”. Disse ele emocionado me dando um forte abraço. Como é bom um bom amigo!

O cruzeiro do sul VIII – Entre um passo e a distância

domingo, 6 de setembro de 2015

O cruzeiro do sul VI - De água, por água, pra água.

Era por volta de 2004 depois de Cristo, o carro parado na GO, cada um num canto mijando, o céu com uma quantidade absurda de estrelas que brilhavam intensificadas pela lua nova. Olhei um pouco para o céu, puxando já o zíper pra cima e pensei: “acho que tá na hora de voltar”. Não sabia me explicar o porquê pensava aquilo. Porque pensei aquilo? Estava mesmo na hora? Não era algo que se pensasse num instante esquecesse logo. Eu tinha que concluir algo e acabava de pensar como se já tivesse concluído. O que resta agora? Voltar pra casa? Arranjar um emprego, uma mulher, casar, ter filhos... Não poderia voltar agora, nada aconteceu pra que eu voltasse. Eu não tinha vencido na vida, acumulado riqueza, tirado a sorte grande, ou mesmo estaria voltando com bons planos e ambições, mas sabia que era a hora de voltar. 
Os sentimentos dali pra frente começam a se tornar cada vez mais melancólicos e a certeza de que o que restaria era só tédio e monotonia trazia dias mais cinzas. Ficava vendo a chuva da tarde na janela durante as raras chuvas de Goiás. Batia uma saudade da minha mãe, dos meus irmãos e da vida que eu levava lá no sul. Muito diferente daquela ali, que eu mesmo escolhi por minha própria vontade. No entanto aquilo não me deprimia a ponto de entristecer, apenas me deixava fixo, no chão, quase cético. 
O dia amanheceu vermelho como sangue, o calor do cerrado iria me cozinhar mais doze horas. A estrada muitas vezes é uma linguagem, se você tiver atento aos detalhes, poderá ver a vida acontecendo. Cachoeira Dourada fica pro lado de Minas Gerais. O vai e vem é constante no trecho da rodovia 154 que liga os dois estados, Minas Gerais e Goiás, uma rodovia onde circula muitos caminhões no entanto nesse dia por algum motivo a rodovia em certo ponto ficou vazia. Não vinha nenhum veículo, tampouco algum nos seguia. Depois de um breve silêncio ouviu-se um barulho vindo da roda esquerda traseira, eu estava atrás no lado direito, e após o Amilton reduzir o carro pra parar e ver o que houve, outro estouro o fez perder o controle do carro, ele puxou o freio de mão, mas o carro rodou na pista como um LP e foi de ré na ribanceira de uns dois metros abaixo.
Agora eu não poderia mais negar e nem fugir daquilo, era a hora de voltar. Porque muitas vezes eu negava minha intuição? Eu estaria renegando a mim mesmo. Eu lembrei de uma certa vez que abri um livro por casualidade e li algo que dizia “seus olhos deixarão de ver...para que então voltem a ver” mais de uma vez essa casualidade aconteceu. Fiquei com medo de ficar cego. No fundo sabia bem o que aquilo significava, mas não acreditava, ou talvez acreditasse e queria já voltar a ver. Enfim, isso já tá escrito ou eu posso escrever?
Catalão com destino a Porto Alegre às 23 horas box 4. Rodoviárias me deixam com frio na barriga e eu nunca consigo descrever se isso são bons ou maus presságios. Viravoltas são constantes na vida de quem vive pela a aventura, mas bom que não precisasse daquilo. Um adeus, um até logo, ou o pior, um até nunca mais... Nossa como isso me corta o coração. Queria levar todos comigo sempre, queria poder vê-los sempre. Mas sabia que ninguém pode nos dar certeza de nada nessa vida. Talvez dali pra frente a vida realmente começaria, eu agora teria me desprendido por inteiro, só não tinha me dado conta. Ali eu estava amadurecendo em questão de um minuto, o que passei durante aqueles quatro anos. Seriam esses os momentos mágicos, que te fazem se desligar daquilo que até então era tesouro para receber em troca o teu dever, aquilo que tu não podes deixar de cumprir, a vida que precisas começar? Uma piada é sempre uma boa maneira de disfarçar um nó na garganta.

O cruzeiro do sul VI - De água, por água, pra água.