domingo, 13 de setembro de 2015

O cruzeiro do sul IX - De coração à terra

Você sabe que está em um lugar perigoso, mesmo não vendo algum bandido, marcas de bala, gente usando drogas nas ruas. O ambiente tem sua maneira de te passar isso, se você estiver atento, poderá ver todas as coisas. Um menino chega pra mim e pergunta se eu vendo livros. Quem não nota um corte de aproximadamente dez centímetros no pescoço de uma criança a um metro de distância? Por toda a Samambaia eu senti medo, mesmo assim fui a todas as casas e conversei com todas as pessoas que precisava. Alguém me contou de um acidente com cerol de uma criança no conjunto, “pegou no pescoço, quase degolou o menino”. Era sempre quente e minha cabeça doía todo fim de tarde. Achava que abaixo de dezesseis por cento daí Deus já estava de brincadeira. Deus, São Pedro, ou sei lá quem que comandava aquela umidade relativa do ar me fez acreditar que sim, sempre tem como esticar seus limites além dos limites, basta uma “pressãozinha” e pronto, lá está você abaixo de sol, sangue pelo nariz e a umidade do ar a quatorze por cento rindo bem na sua cara. Sempre tem aquela boa alma que traz um bom copo d’água, um convite pra vir à sombra ou mesmo um convite para entrar e tomar um café. Pensava o que eu estava fazendo lá. Bem no meio do Brasil, mais de mil quilômetros de algum parente, entrando em cada casa, de cada rua, de cada bairro de cada cidade satélite. Barro vermelho sob os pés, poeira vermelha se misturando ao suor da testa, uns bons óculos escuros prateado com lente verde espelhado e uma pasta preta com notas e alguns manuscritos, relatando em detalhes aquela longa jornada. O resto era muita coragem, gosto pela aventura, amor pela fotografia, pela geologia e sorte igual a nunca se tinha visto antes naquela jovem vida aventureira. 
Um pastel de carne e um café preto doce que igual mesmo só em Brasília, um real e cinquenta. Sobravam dois e cinquenta. Almoço por quatro reais nunca mais eu vi. A última vez foi em Pirenópolis, ou em Santo Antônio do Descoberto onde tinha uma pousada que a gente entrava na cozinha. Tinha uma mesa grande que abrigava umas vinte pessoas, cada um pegava seu prato e ia até o fogão à lenha e se servia o quanto fosse necessário. Tinha refrigerante, mas não do tipo coca-cola, fanta, ispraite, tinha aqueles guaranás em garrafa de cerveja. Isso mesmo, só coisa boa. E se ainda desse aquele ataque de, “ah refrigerante faz mal”, você podia ir até o quintal, pegar uns dez segundos de sol do meio dia, a um milhão de graus na cabeça, e buscar laranjas no quintal pra fazer um suco no espremedor de alumínio à manivela.
Parei de escrever pra procurar um local onde batesse pelo menos uma brisa e acabei por ver um terreno baldio com algumas pessoas por ali olhando em direção ao mato que encobria o terreno e escondia um corpo, mas não os pés que provavelmente ficaram pra fora propositalmente. A aglomeração aumentou. Em questão de poucos minutos crianças estavam por ali, brincavam de atirar no corpo, queriam pular por cima do corpo morto, não fossem contidos pelos policiais. Qualquer que fosse o acontecimento, nada ali chamava muita atenção. Eu me perguntava como um lugar que durante o dia não se via ninguém pelas ruas além de crianças correndo e brincando se misturando a sujeira e aos cachorros, podia acontecer aquilo. “Di dia os bandidos tão tudo dormindo, pá di noite eles trabalhá, hahahaha”. Ela ainda ria. Achei que poderia no quarto da casa está dormindo um. Até mesmo o próprio homicida da noite anterior, quem sabe? Sofri por um momento, perguntei se poderia usar o banheiro. Passei um pouco de água na cara. Saí rapidamente quase tropeçando na motoca de plástico deixada no degrau da porta. Eu sempre quis estar em Brasília, mas até então tinha medo, ouvia falar do alto índice de violência e ficava muito assustado. Uma ligação de Taguatinga pra Uberaba, um convite via telefone e a promessa do pagamento da passagem e pronto. Lá ia eu morrer. Que se foda! Morro mesmo! “Minha mãe me mata” pensei logo após uma breve reflexão...Tudo bem, ela supera!

O cruzeiro do sul IX - De coração à terra

Um comentário:

  1. Estive no centro do Brasil, não me lembro o ano, e a sensação fui sentir novamente ao ler este texto, Que legal viajei também ao ler .

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