quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O cruzeiro do sul VII - A pedra magnífica

Aquela temporada anterior ao ano dois mil foi mesmo demais, conheci o Arthur, a Bica, a Dani, o Telles, a Luciana, a Desirré. Fazíamos lual quase toda a noite de sexta e sábado. Ás vezes em pleno dia de semana. O mundo ia acabar e a lua nascia vermelhinha, juro, sei que muitos lembram, uma hora da manhã ela vinha derramando sangue. Muitos bons papos, luares, becks e romances agitaram aquela temporada. Num lual desses eu conheci a Carlinha e a irmã dela, elas me convidaram para conhecer onde elas moravam em Floripa, no beco do surfista. Muito massa era a onda do forró que imperava na ilha aquele tempo. Na volta de um  forró desses vi um bédibói dando uma surra num menino em frente ao camping que eu ficava.  "...ele merece apanhar bróder." Melhor eu ficar quieto. Arranhou o carro do cara com uma tampinha de garrafa. Puts. Não tinha nada que o tiraria a razão ou acalmaria o cara ali. Na casa da Carlinha eu comentei no dia seguinte e indaguei se existiria ainda um lugar onde todos se respeitassem, só galera alto astral, sem violência, onde não houvesse aquele tipo de cena pra tirar a paz do cara e foi então que o namorado da Carla disse: "São Thomé das Letras." Na verdade não tinha nem que comentar isso com ele, nunca tinha visto aquele homem na minha vida e já estava contando o porquê eu queria ir pra São Thomé, tudo que eu sabia dele era que ele trabalhava por ali. Acho que era tipo um vigilante, guardinha, ou olheiro duma daquelas lojinhas da bagunçada rodoviária de Belo Horizonte. Mas quando se está assim solto no mundo, a gente tem uma facilidade de se expressar, de ler as coisas, as pessoas, e então dá muita vontade de conversar. Ia ser complicado dormir por ali, muita gente pra lá e pra cá, e já era quase uma hora. Porra, também, nunca imaginei me perder. Desci do caminhão no primeiro posto dentro dos limites da cidade. Tinha grana pra um café com leite, uma pamonha salgada e a passagem até no centro. Iria sobrar pouca coisa, mas daria tudo certo, não fosse eu pegar no centro o ônibus em direção ao norte. "Mas a mulher me garantiu que ia pra rodovia em direção ao sul." Também, cada pessoa que eu perguntava dizia uma linha. Pega o vinte e um trinta e sete, outro, ah é o dezessei vinte e dois, o catorze trinta e seis. Parecia jogo do bicho, cada um dizia um número. No fim até que gostei de ir parar naquele lugar. Parecia um lugar perdido no tempo. Meia dúzia de casas, uma igrejinha, em frente ao único ponto de ônibus do lugar, uma venda, com um caboclo escorado na porta da frente. Calça com bainhas dobradas a mão, uma mais alta que a outra, camisa de botão por dentro das calças sem cinto e erguidas quase até o sovaco, um chapéu de feltro sujo, olhar vazio por trás do enorme bigode, de longe ele parecia impressionado com a visão daquele viajante com um violão a tira colo. "Eu te levo de volta pra rodoviária",  abençoado o motorista, que disse depois já ter viajado de carona por aí também. Enfim, agora era escorar a cabeça na mochila e dormir abraçado na viola. O simpático senhor me deu a dica de subir no segundo andar. "Tem uma corrente, Passa por baixo sem problemas. Lá fica vazio à noite. Eu cuido pra não deixar ninguém ir pra lá."
Sabe aquela sensação de que você vai ser assaltado? Pois é, não tive, mas eu li isso no ambiente. Muito explícito. Eles me viram de longe e parecendo conversar algo a meu respeito atravessaram a rodovia, eles estavam do lado que ia para o norte, e começaram a vir em minha direção. Eram uns quinhentos metros, mais do que ligeiro abri a mochila e fingi pegar algo, enquanto escondia melhor o disquemen entre as roupas. Eram quatrocentos metros e pensei: Que se foda, vou blefar. Nisso fechei a mochila e em seguida fitei-os. Fui acompanhando aquela aproximação com olhar firme e o cú na mão, duzentos metros, cem metros. Eu estava em um trevo da rodovia que vai para o sul de Minas ou para o triangulo mineiro,  na região metropolitana de BH mais precisamente em Contagem ou Betim. Eles parecendo comprar meu blefe, foram indo em direção a rodovia que ia para o triângulo por fora do trevo que eu estava e que tinha mais ou menos cinquenta metros, indo assim para trás de onde eu estava. Tentei esquecer deles um minuto e fiz sinal para um gol branco que vinha somente com um casal dentro. Me deixaram cinquenta quilômetros mais  a frente.
 Aquele dia eu torrei. Foi umas seis ou mais caronas pingadas para percorrer pouco mais de trezentos quilômetros, sendo que entre uma carona e outra, eu não esperava, ia caminhando, pensando na vida, curtindo a fotografia e a geografia do lugar. Conversava sozinho, tipo, "pow hein Deus, tá de sacanagem né? Já caminhei vinte quilômetros. Uma carona por favor." Me sentia livre de verdade, livre do mau que te prende, e te cobra sem te dar tempo de pensar. Muita gente te dizendo o que fazer, no que estudar, no que se formar, com quem casar...aff eu não era daquele jeito. Minha mãe nunca ia entender, nem ela nem ninguém. Preferia estar ali, todo mundo achando que eu ia virar andarilho, marginal, veado, ou qualquer outra coisa que traria desgosto pra família, mas no fim eu só queria pensar no que iria fazer, como iria viver a minha própria vida, sem a opinião ou muito menos a cobrança de alguém. Duas horas de caminhada e nenhuma carona, que coisa, às vezes cantava uma música pra minha satisfação e desgosto dos passarinhos que iam e vinham como se me acompanhassem naquele martírio. Por fim, de longe avistei um cara em uma parada de ônibus. Eu tinha tipo uns poucos, bem poucos mesmo, trocados, mas não dava uma passagem até Três Corações. Me aproximei. Perguntei se outro sol era preciso. "oche.." Fez uma cara de quem diz que aquilo era a pior coisa que poderia acontecer. Ele trabalhava na cidade vizinha daquela em que estávamos, disse que o motorista era amigo dele e que sempre ganhava uma caroninha naquele trecho. Disse que se eu pagasse a passagem dali, ou seja, o valor de passagem municipal, o motorista  que também era cobrador, faria vista grossa e deixaria eu descer só em Três corações. Bastava eu conversar e explicar a situação para ele. "Gente boa pra mais da conta... oche... aquele ali eu conheço." Ele tinha razão, o motorista era mesmo uma boa alma. Enfim, estrada Três Corações x São Thomé das Letras. Consegui uma carona até a metade do caminho. E agora, quem vai dar carona a noite? Entrei no primeiro armazém da estrada, na frente nenhum carro, só uma moto TT pra quem conhece. Entrei. Quarenta e dois quilômetro de estrada e eu justamente no meio. Do nada. "Quer tentar? Sem capacete." Eu sou de negar o perigo? Aceitei o convite do  motoqueiro que me garantiu que depois daquele bar era só mato, escuridão, ET's e o escambau. Do pé da montanha até a entrada da cidade eu corcoveei feito um peão de boiadeiro naquela moto.
Fui caminhando de mansinho, parecendo tatear o lugar e vi um cara na sacada de um apê. Eu disse que estava chegando e estava querendo um lugar pra ficar, mas sem luxo, porque eu era aventureiro e a luta era grande. Ele me disse: "Amigo, tá vendo essa estradinha ali? Pega ela e vai subindo, logo vai fazer amigos, já cola uma gatinha na tua, depois tem um som que rola lá em cima no bar do dois." Só podia tá louco, onde já se vi um lugar assim, não era a Disney. O Márcio vinha descendo a rua e veio em minha direção me estendendo a mão com um sorriso bem amigável. Começou no meio do assunto que tinha que descer ali no Xande pra buscar um fumo, eu não sabia quem era Xande, mas fui junto. Voltamos até a casa de onde o Márcio veio, tinha uma janta lá. Era a casa de um cara que tinha metade da cabeça raspada e a outra metade com cabelo cor de rosa. Ele disse que era de gêmeos. Dois dias mais tarde estou sentado nas pedras olhando em direção ao vale, ou fundos da cidade. O céu parece feito com papel crepom azul e as simpáticas estrelas como diamantes, a lua eu tinha certeza que estava a uns dois quilômetros de distância da gente. Uma gigantesca gema no céu. Segurei a mão dela e a beijei de novo. Como podia eu totalmente crente, em Deus, em energia, em pensamento, em destino, em coisas e pessoas e ela totalmente cética, analítica, calculista. Uma troca de olhar, um ou outro comentário, um friozinho na barriga. Não, eu não ia deixar passar batido. Eu ela nos grudamos durante aqueles dias todos. Duas semanas praticamente reservadas para nós no paraíso. Conhecemos as cachoeiras, vimos as estrelas bailarem no céu de São Thomé ao som do bar do dois, conhecemos o Tio Bill, vimos a luz do fogo se misturar ao nosso brilho do olhar e fizemos aquilo que ela insistia em relembrar nos dias que se passaram. Levamos o colchão da casa dos "hippies" que nos alugaram o chão da cozinha da casa deles, lá pra cima da pedra da bruxa. Lá a gente ficou até o frio das cinco horas da manhã nos vencer. Ela nunca tinha viajado de carona. Mas voltar pra São Paulo como, se nossos últimos centavos gastamos nas nossas duas e meia semanas de amor? O dia se vai, a Thaís e o caminhoneiro com destino a São Paulo também se vão. Vejo o caminhão sumir no horizonte. Ignoro os carros que passam, me viro e retomo minha jornada, volte e meia ergo o polegar. "O chiquinho mora em Araxá", pensei. "Pois é... depois ainda quero ir a Uberaba, preciso ver o Chico Xavier, quero conhecer Brasília... Ou melhor, acho que Brasília não." Já é quase noite, um carro pára.


O cruzeiro do sul  VII - A pedra magnífica

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