quinta-feira, 10 de setembro de 2015

O cruzeiro do sul VIII – Entre um passo e a distância

Eu sempre quis saltar de paraquedas. Qualquer coisa que fizesse meu coração acelerar um pouquinho e me fizesse sentir um pouco mais vivo, eu queria. Eu queria adrenalina e não achava que era interessante deixar de fazer as coisas que queria por simplesmente perigo do que poderia acontecer. Na verdade queria realizar-me como ser humano, mas com vinte e três anos, cabeça de treze anos e experiência de vida de três anos. Enfim, o máximo que eu podia fazer estava fazendo. Sair de onde estava pra poder ir o mais longe que podia, sem nada, sem dinheiro, sem segurança, sem ajuda, sem nem mesmo um incentivo de alguém era muita, eu digo muita adrenalina. No verão anterior ao ano dois mil eu estava em Torres e o verão ia começar, consegui trabalho de garçom no Restaurante Internacional da Guarita, dentro do parque de mesmo nome. Para o início do trabalho era necessário frequentar o curso de garçom que se deu no extinto Continental Torres Hotel. É bom pra se familiarizar com o pessoal que vai atravessar a temporada com você durante dez horas do dia, durante os noventa dias da temporada. Foram muitos bons atendimentos, muitos maus atendimentos, muitos entendimentos e muitos desentendimentos. Nada fora do normal. Aqueles até então desconhecidos guerreiros, tornaram-se parte de uma louca galera que muito riu durante aquela temporada. Para o fim do verão era combinado aquele salto a dez mil pés sobre a linda praia de Torres, e depois a mochila nas costas pra seguirmos em direção ao Rio de Janeiro pegar o inverno e a temporada seguinte na região dos lagos, provavelmente em Búzios. Merda nenhuma. Eu estava ali sozinho, sem nenhum daqueles “papudos”, pensava às vezes ressentido. Mas o que se daria se tivesse sido diferente? Já teriam tudo se brigado, quebrado o pau e daí só ia ficar más lembranças. Melhor assim. Vou sozinho mesmo. O que tem de mal em dormir na rua? Uma vez só, até amanhecer. Já eram quatro e meia. Na grama da fábrica da Brahma eu tentei, mas não consegui. Coisa pinicando na roupa ninguém merece. Então a sorte me trouxe uma caixa de papelão do tamanho de uma teve de vinte e nove polegadas. Era gol. Colchão ortopédico, tempo quente, e uma revessa ao lado de uma padaria. O que eu queria mais. Cinco estrelas. Aquelas três horas de sono cansado se transformaram em mentais vinte segundos. Outro dia chegou e o dinheiro ainda dava um pão com margarina e um café com leite. A fome ainda estava ali, mas controlável. Na fábrica a indicação do tio da guarita de vigilância me levou até um cara de óculos quadradinho, tipo de um técnico de futebol que não lembro o nome agora. Ele disse que eu estava com sorte, ele ia para o triângulo mineiro. “Araxá fica um pouco antes de Uberaba, te deixo lá”. Tamanduá é um animal que sempre quis conhecer, ou pelo menos ver com meus próprios olhos, mas nunca esperaria vê-lo morto atropelado. Que merda! Odeio os humanos. Nós não conseguimos viver sem fazer merda. Isso aqui não é só nosso, é feito pra todos. Araxá deve ter em torno de uns cem mil habitantes, se eu procurar alguém nessa cidade a minha chance de encontrar é de um em cem mil, calculei rápido. Fiquei um pouco desanimado, mas enfim, o que eu podia fazer pra resolver aquilo? Começar a procurar. E então eu fui de pessoa em pessoa e disse que estava procurando um cara que se chamava Francisco, o apelido dele era Chiquinho e ele era do Rio Grande do Sul, gremista fanático, de olho azul. Conversei na rua com umas cinquenta pessoas até ter a idéia da rádio. “Sim, aquela vez em Muriaé eu fui na rádio e anunciei”. A lembrança do resultado foi um pouco desanimadora e acabou baixando um pouco aquela excitação, mas enfim, pelo menos na rádio eu descolava uma água gelada ou quem sabe um café, daqueles melados que fosse, e um banco estofado pra descansar as pernas. “Cara você está com sorte”. Aquela velha e conhecida frase ele acabou me estendendo um copo de café me apontando o açúcar ou adoçante. Apenas tomei um gole puxando a cadeira. O técnico de som sabia de quem eu estava falando, e estava indo pra lá naquele instante. Na verdade era a casa do tio do Chiquinho, o seu Francisco de mesmo nome e apelido, me explicou a esposa dele. “Mas o Chiquinho tá sempre aqui, inclusive eu recém liguei pra ele vir me trazer mais geleia e mel”. Dez minutos mais tarde olhei bem no fundo daquele olho que tinha a mesma cor da camisa, parece que me via refletido ali naquela retina, todo sujo, e com os cabelos molhados da recente chuva a caminho dali. “Tem lugar na tua casa pra mim? É só de passagem”. Perguntei rindo. “Dentro de casa não, mas o quintal é grande”. Disse ele emocionado me dando um forte abraço. Como é bom um bom amigo!

O cruzeiro do sul VIII – Entre um passo e a distância

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