sábado, 7 de novembro de 2015

O cruzeiro do sul XVI - Cenas do próximo capítulo

O Chico já estava começando a achar que aquela visita passava do prazo. Ele não disse isso, em nenhum momento, mas eu senti. A mulher dele era bem legal, mas pessoas da igreja adventista são um tanto radicais e pouco passíveis de convívio com quem não faz parte do grupo. Eu já comecei a me mexer e disse que estava indo pra Uberaba dali dois dias. Eu fiquei em Araxá um mês, pouco mais ou pouco menos. Não consegui trabalho e não quis vender os produtos que o Chico vendia. "Vendas não é pra mim". Ele não entendia como alguém que aceitava andar perdido pelo mundo tinha vergonha de chegar em uma casa pra oferecer um produto ou um serviço. Em Araxá, conheci uma galera bem legal, uns isqueitistas que andavam numa pista anexa à uma loja do gênero. Passava os domingos lá, o sábado é sagrado para os adventistas, então nesse dia eu me juntava a eles no culto da igreja, rezava, cantava os louvores e até me divertia junto deles. Quando chegava sexta-feira ao pôr-do-sol, já entrava-se em vigília. Na casa do Chico cantava-se louvores, lía-se a bíblia e debatía-se a respeito do texto e do ensinamento absorvido. Certa vez não foi muito bem sucedida essa atividade, eu queria cantar na segunda ou na terceira voz, mas saía horrível o Chico começou a rir e eu também não me aguentei, a mulher dele ficou furiosa e saiu da sala. Ele chamou ela, pedimos desculpa e começamos de novo. Mas quem conseguia? Era eu abrir a boca e soltar a voz e a gargalhada pegava. Na terceira vez ela prometeu que era a última tentativa, e foi. Aquela noite deixamos assim mesmo, pra evitar maiores discussões. Na casa da tia do Chico eu pousei umas noites, passei alguns dias e cozinhei no almoço pra Valquirinha e pro Luquinhas quando ela precisava ir pra escola dar aula, já que ela era professora. Eu me juntei a eles de forma a fazer parte da família com a maior naturalidade, algumas vezes tentei vender os produtos que o Chico vendia, mas eu ainda não estava pronto a encarar aquilo, precisava passar mais trabalho. Teria que passar mais perrengues, por que só assim se toma consciência de onde se está e quem se é. Eu ainda não tinha noção do que estava acontecendo. Talvez pensava que era um turista. Foi que eu então decidi que era hora de seguir viagem. Dois dias mais tarde, vendi o disquemen pro Chico pra ter algum dinheiro pra quando chegasse em Uberaba. Agradeci e combinei com a mulher dele de encontrá-la em Uberaba na saída do curso que ela fazia lá de Técnico de Segurança do Trabalho  pra devolver uma grana que o Chico me emprestou, já que o valor do disquemen não era suficiente. Com mais sorte que juízo, me despedi daquele tão querido amigo e daquela tão inflexível, mas muito correta, esposa dele. Estando na rodovia, tudo volta a ser como era antes de chegar ali. Cheiro igual a todas as estradas por onde andei, o som dos carros passando como uma trilha sonora na cabeça, e a companhia do sol iluminando e reenergizando a aventura. Quase uma hora depois de estar ali esperando uma carona e do Chico ter retornado pra dentro da cidade, o tempo começou a fechar. Logo começou a garoar e um carro com  quatro pessoas dentro parou. "Sempre cabe mais um". A chuva foi aumentando e eu fui ficando com um pouco de vontade de mijar, mas achei que era perto e logo chegaríamos. Conversei sobre algo pra despistar um pouco a vontade, mas não teve jeito, a bexiga foi inchando e o ar frio da chuva que entrava pela ventilação do carro pegava bem em mim, que estava no meio do banco de trás. Pra ajudar começou a chover cada vez mais forte então eu teria que pedir pra parar o carro na chuva e mijar na chuva. Ai meu senhor Deus, eu tenho o dom de arranjar encrenca mesmo. Quando achei que se demorasse mais um segundo pra mijar na roupa e no banco do carro eu disse: "Me desculpem amigos, mas preciso descer pra urinar". Acho que até Deus já estava agoniado de me ver naquele estado que no momento que o carro parou, a chuva cessou, do nada. Eu desci já com dor na bexiga, que estava tão cheia que fiquei ali uns vinte segundos, com o pau pra fora sem sair uma única gota. O silêncio no mundo, a chuva fininha como aerosol, o sol fazendo força pra sair de trás das nuves, um arco íris já formando e então depois de mais ou menos um minuto de agonia e dor o tal do mijo veio. Não quero exagerar, eu mijei uns três minutos. Já estavam começando a fazer algum comentário dentro do carro e até umas risadas eu já estava ouvindo, quando enfim guardei o pau molhado. "É...cê tava apertado hein?! Ôche.. porque não disse logo?" Porque eu sou um ridículo mesmo, pensei comigo. Pra disfarçar comecei um assunto. "É bonito Minas Gerais hein?!" Contei que estava indo pra Uberaba porque queria ver o Chico Xavier pessoalmente. Eles iriam passar por dentro do bairro em que ficava o centro espírita onde ele administrava as palestras e podiam me deixar em frente à casa dele que ficava bem próxima. Em frente à casa do Chico Xavier peguei um ônibus que dava a volta na cidade e levava até o outro lado onde tinha um albergue que abrigava viajantes. Lá podía-se tomar um banho, jantar, tomar café e dormir numa cama quentinha. Só tinham três regras: não podia ficar ali mais de dois dias, não podia fumar e nesses dois dias se saísse, não podia voltar mais. Logo pela manhã já saí, peguei minhas coisas e fui descendo uma ladeira grande que acabava no centro da cidade. Parei em frente à uma casa onde tinha uma placa. "Pensão da Tia Lurdes - Aluga-se quartos". Toquei a campainha e uma moça de uns vinte e cinco anos com um chórte curtinho e de mini blusa sem sutiã veio me atender. "Oi... posso ajudar?" Ai, ai... como podia. Foi em Uberaba que muita coisa mudou. Lá eu descobri que sabia fazer muito bem uma coisa que até então nem imaginava que sabia. Vender.


O cruzeiro do sul XVI - Cenas do próximo capítulo

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