segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O cruzeiro do sul XV - Da nascente à magia

O Almerindo comia umas coisas estranhas. Cebola crua. Assim, como se come uma maçã. Credo, já fazia meia hora e eu ali esperando ele vir me buscar. Outro dia ele apareceu comendo um milho assado. Passou três magos e uma criança que ficou me olhando assim como se perguntasse: "Quer aprender magia? Te ensino". Puxa, parece um lugar tranqüilo, por que não consigo me sentir normal? Nem tudo que parece é, e se tratando de um lugar habitado por pessoas, qualquer coisa pode acontecer. Parou uma van dessas que fazem o corre Plano Piloto ou Planaltina x Vale do Amanhecer. Desceu umas quatro pessoas, uma mulher de idade reclama do preço da passagem para o atencioso motorista. O cobrador apenas olha e sem expressar sentimento vai fechando a porta de correr devagarinho como se fosse a ampulheta do tempo. Parecendo entender, a senhora se despede encerrando seu comentário. Eu gosto do fim de tarde de Brasília, as nuvens ficam coloridas, em formato de bichinhos, o calor da tarde leva o pessoal aos barzinhos onde no fim do dia se bate aquele hamburguer, que fica no chinelo se comparar ao xis gaúcho é claro, mas que tem seu papel importante na composição daquele crepúsculo. As crianças brincavam de encenar algum tipo de ritual bem no meio da rua, nisso passa uma viatura em direção ao fim do Vale, para a esquerda de quem está de frente ao portal. Aquele menino apressado que era o cobrador da van, levou um tiro de bala perdida. Que coisa, num instante se está ali, no outro não. Ainda hoje eu lembro da cara daquele cobrador que tinha pressa. Ele tinha um encontro com a morte,  e não sabia disso. Quantas vezes precisei esperar e não quis? Lembrei da minha mãe e das outras pessoas importantes para mim. Quis mudar, quis ser outra pessoa, menos aquela ali se sentindo o ser humano mais frágil do mundo. Toda aquela magia que exalava daquele lugar não tinha sequer poder de atrasar uma van, o tempo, ou de manter a paz no local. Tudo perdeu o sentido na lembrança do olhar do pobre cobrador. Quantas vezes tive pressa e não deixei que as coisas seguissem seu rumo natural? Não deixo Almerindo correr, ergo o vidro, tento me esconder da morte, mas não era exatamente isso que havia causado o ocorrido? Me senti confuso. Não vi a volta pra casa e conversei tão pouco no carro que estranharam meu silêncio. Nada não. Pequena paranóia a parte. Liguei pra minha mãe aquela noite, pra outras duas pessoas distantes também. Passei a janta inteira na rua olhando a Estrela de Magalhães. Sem fome. E se eu não conseguisse completar aquela aventura? E se eu não visse mais as pessoas que eu tanto amava? Se eu nunca tivesse filhos e netos pra contar aquelas aventuras?
Às vezes ver o dia nascer faz seu espírito renovar. Também, depois daquele massacre de consciência! Não fosse ela me encorajar não sei o que seria. "Que isso meu filho? Tu que sempre foi tão desprendido, meu orgulho, levanta a cabeça". Aquele dia eu dei bom dia com o sorriso mais lindo e sincero que podia, abracei as pessoas que pude, liguei pra outras pessoas distantes e me senti vivo de novo. Meu sorriso, aquela estrela, um abraço, aquelas palavras maternas, o carinho dos colegas, era tudo a verdadeira magia. O verdadeiro poder de mudar. Crianças rindo e brincando pelas ruas. Aquilo sim era poder. Voei em instantes por toda minha jornada, da saída com aquela música do Caetano à chegada em Brasília. Toda aquela jornada voltava a fazer sentido. O Céu Azul é um lugar tão perigoso quanto a Samambaia, se não mais, no entanto naquele dia isso não chegou sequer aos meus pensamentos. Olhei no fundo do olho de cada pessoa. Quantas pessoas realmente estavam ali interessadas naquilo que eu fazia? Quantas estavam ali pelo meu dom de cativar? Quantas apenas quiseram se aproximar daquele "mascate" só pra ver bem de perto aquele sorriso, ou apenas pra conversar um pouquinho naquela tarde vazia de sol quente? No fim, todos querem a mesma coisa. Atenção. Todos queremos um abraço, mesmo que por trás de uma cara feia, e eu agora sabia disso. Aquele dia eu descobri isso. Eu ofereci meu serviço à uma senhora que me interrompeu pra dizer que meu sorriso a fez lembrar do filho querido dela que havia morrido afogado. Já fazia mais de quatro anos, mas pra uma mãe esse tipo de tempo não passa nunca. Ouvi a estória interia e por fim ela não aceitou minha proposta, mas disse que Deus havia me mandado ali para fazer a tarde dela melhor. Na volta pra casa brincamos e rimos muito. Em certo momento paramos na rodovia em carácter de emergência. O Almerindo peidou tão intensamente que embaçou os vidros.
Era domingo. Eu tinha uma namorada no Paranoá, fomos assistir a estréia do Harry Potter no Plano Piloto. Na volta fiquei observando a arquitetura de Brasília. Aquele arquiteto era mesmo o cara, eu conseguiria fazer algo pra deixar pra eternidade? Fui dormir com a sensação de que tudo tem sim sentido. Tentei me imaginar no futuro. Acreditei com todas as forças que estaria dali uns cinco ou seis anos talvez por Brasília mesmo, ou em qualquer outro lugar do mundo, em cima de um palco, milhares de pessoas  me assistindo tocar e cantar minhas músicas. Seria famoso, rico e muito feliz. Imaginei que toda aquela atenção dada voltaria em forma de realização pessoal. Mas a Grande Alma um dia disse: "A satisfação não vem da realização, vem do esforço. Esforço total é vitória total." Nunca imaginei que na verdade estaria aqui contando isso à vocês. Eu não tinha na verdade a noção do que realmente era o importante nesse mundo. Hoje ainda não sei, mas uma certeza de que tenho é que a realização não está no viver, e sim em completar a caminhada. E isso, claro que pode esperar. Enquanto isso, vamos viver!

O cruzeiro do sul XV - Da nascente à magia

Nenhum comentário:

Postar um comentário